terça-feira, 30 de dezembro de 2008

O

" Talvez você queira saber, talvez esteja pensando porquê, ou até mesmo, talvez você esteja pensando se era eu o pássaro que apareceu na cozinha da Carla naquela noite de segunda-feira. Esta é provavelmente a sua primeira pergunta. Deixe-me apenas dizer uma coisa: eu não posso responder isso. Pelo menos, não ainda. Eu vou primeiro responder a sua segunda pergunta. Porquê: bem, eu tinha que fazer alguma coisa original, você entende essa parte? Eu percebi que a Carla tinha me desrespeitado chamando a Mila no meu horário de visita e, de qualquer forma, eu estava um pouco entediado com a minha rotina, se é que você ainda não imagina. Você teria ficado entediado também. Não é nada que eu tivesse planejado. Eu nem mesmo sabia que a Mila estava indo para lá quando eu me joguei contra a janela, olhando para as fatias de queijo, taças de vinho e os seus narizes bem desenhados e lindos lábios pintados de batom. Eu não pude ficar ali simplesmente me debatendo, despenando e dramatizando no meu velho estilo roqueiro nessa irritante visível/não visível, audível/não audível encarnação. Eu tenho na verdade que me mostrar, em todo meu esplendor. Sim, eu até sou boa pinta para um Outro. Todos os Outros são individualmente associados com certos animais que são determinados no nascimento, ou melhor dizer, morte. Alguns Outros são sortudos, como eu: eles são associados com animais bonitos, em outras palavras, animais que são naturalmente bonitos, como pássaros e tigres: estes são meus animais. Como eu disse, eu sou sortudo. Mas outros Outros aparecem em forma de ratos, pombas ou elefantes, se eles decidem por ter alguma forma. E os gatos? Você quer dizer gatos de estimação? Não, isso é impossível. Eles são separados de todas as outras criaturas. Está tudo escrito em nosso código. Mas ainda tem uma coisinha a mais. Os Outros têm certas características que traduzem em qualquer encarnação. Então o fato de que eu tenho um bom cabelo, olhos grandes azuis e um corpo bem construído por músculos significa que quando eu me encarnar, essas coisas vão estar sempre presentes. Quando eu sou um pássaro, eu tenho topete grande e vermelho, penas bonitas e brilhantes, um bonito e bem torneado bico e uma mancha no peito. Como um tigre, eu sou puro músculos, com ossos elevados, pêlos veludados e brilhantes e olhos cor de amêndoa com longos cílios. Ou seja, eu sou bonito não importa o papel. E porque eu sou naturalmente musical, bom para ser sincero, também são todos os Outros, mas eu tenho trabalhado esse talento, então eu tenho o melhor canto de pássaro da minha região do país. Eu tenho participado em competições. Sério. Acredite. Eu ganhei algumas medalhas e honras. Funciona bem com as garotas. Eu sou um imã para as mulheres, sendo bem sincero. Mas vamos ver, então eu imagino que eu respondi as suas perguntas. Eu só não quero aparecer e dizer que sou eu porque isso ia estragar tudo. A surpresa é a melhor parte. Surpresas são presentes. Eu queria dar um presente aquelas duas garotas. Mesmo sabendo que os humanos, e alguns Outros, são extremamente talentosos na arte de perder as coisas que eles não querem ver ou ouvir. Essas coisas talvez fiquem registradas neles em algum catálogo inconsciente do cérebro, esperando para dar expressão em algum encontro mais tarde, ou talvez elas permaneçam lá para sempre, acumulando poeira, teias de aranha e todo tipo de entulho, ficando mais e mais profundo até que precise de anos de terapia para se revelar. Mas eu estou ficando fora do tópico. Eu estava dizendo que isto era um presente para a Carla principalmente, mas para a Mila também, por ser uma amiga tão verdadeira e entreter a Carla um pouco. Foi um movimento de risco, na verdade. Muitas pessoas pensam que fantasmas têm que se comportar como fantasmas, usar um lençol branco para se cobrir e fazer "búu", sentar na beira da cama e aparecer a noite. Mas pelo amor de Deus, chega de clichê. Foi por isso que os Outros decidiram fazer novas regras para os fantasmas, então eles podem ter um pouco de divertimento e curtir a vida, quer dizer… você entendeu. Mas de qualquer forma, quando você está lidando com uma pessoa descrente, como a Carla, o critério é alto e é preciso pensar em táticas mais originais. Por isso, depois da minha encenação trágica na janela, consegui entrar pela casa e fui para o centro da mesa. Chegando lá fui surpreendido por um prato de salmão com crosta de ervas e coalhada seca. Só então entendi para que serviam todos aqueles temperos e ervas que a Carla insistia em manter na cozinha. Estavam todos ali: rindo da minha derrota e orgulhosos com a vitória sobre a mesa. Para coroar ainda mais a cena, raspas de laranja, raspas de limão siciliano, azeite de oliva e uma pitada de sal. Não sei porque dizem que o alho é bom para espantar vampiros, mas com certeza todo aquele tomilho, alecrim, orégano e páprica serviram para me assustar. Por isso embora continuasse com meu peito estufado de pássaro, permaneci sem meu canto. Fiquei ali estático à espera que ela me dizesse que não era bem assim como eu estava pensando, que ela não estava tão recuperada da minha perda, que as amigas não são assim tão boas companhias, que nada se compara ao frango frito que comíamos juntos todo sábado à noite na frente da TV. Talvez eu estivesse me precipitando. Ela pode ter feito tudo aquilo num ímpeto para fugir da depressão. Uma dessas atitudes que tomamos contra nossa vontade e colocando forças onde não temos para seguir em frente. Só sinto por nunca ter experimentado esse salmão. Não sabia que ela cozinhava tão bem. E pelo estado impecável da cozinha, pela conversa, pelas unhas feitas, cabelo arrumado, não parece nem ter se dado ao trabalho. Deve ser uma dessas receitas "pá pum" que ela sempre tentava me convencer toda vez que eu pegava no telefone para pedir frango frito. Bom, mas o tempo passou e, nesse caso específico da mesa, passou mesmo e eu fiquei ali: Um pássaro imóvel, olhando para a Carla e sentindo o cheiro de todos aqueles temperos.
Ela não me notou. Talvez se eu ficasse menos tímido e desse um show de cantos, mas não foi o caso. Pensei que já seria o suficiente. Mas como disse, os humanos não percebem as coisas, os sinais, os pássaros apaixonados. Não faça essa cara! Eu disse que alguns Outros são permitidos de ter relacionamentos com humanos? Bem, isto não está inteiramente certo. Nós somos permitidos de prestar atenção em algumas pessoas, mas não é suposto ficar envolvido romanticamente. Eu quero dizer que a questão é: isto não está gravado em nenhum pedra, mas está lá, sem ser dito, sem ser escrito. Eu simplesmente tenho dificuldades em seguir regras. Eu sei que existe sempre um risco quando um Outro se involve romanticamente com um humano. O Outro pode pegar um corpo humano por erro ou o humano pode querer seguí-lo para, bem, o Outro lado. Este é o risco. Já aconteceu antes. Mas ouça, eu sou um fantasma liberal. Quem tem que me dizer como eu devo me comportar? E qual é o grande perigo se eu puxar a Carla para este lado? É bonito por aqui, tem um monte de vantagens: suas "roupas" nunca ficam sujas, você também nunca precisa comprar novas, você tem saúde e seguro de vida grátis e qualquer carro que quiser. Enfim, se eu trouxesse o corpo dela, quer dizer, isso não ia acontecer. Eu estou super positivo de que não aconteceria. Eu não deixaria isso acontecer. Eu só estou contando a verdade toda para que você não ouça de uma outra pessoa. Como no caso dessa viagem que a Carla vai fazer com seu amigo Pedro. Sim, eu sei tudo sobre isso. Eu não sei se aprovo. Na verdade, Pedro não é uma boa companhia para ela. Eu posso ver isso daqui. Ele não pode cantar e ele não é um verdadeiro tigre como eu sou, ele se parece mais com um rato. Bom, mas para finalizar a minha tentativa de aparecimento triunfal, elas comeram todo o salmão, beberam o vinho e se deliciaram com um brigadeirão: uma espécie de bolo de chocolate sem a parte "bolo", só brigadeiro. E nesse momento, pude ver no rosto da Carla uma pitada grande, ou melhor, uma colherada grande de prazer. Depois de comer a sobremesa, passou a língua nos lábios e percebi que ela tinha me esquecido. Mas talvez seja só naquele momento. De qualquer forma eu não vou chorar. Fantasmas não choram. "




Cuento original de: Cris Leão.

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