terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Dois pra Um

"Já morava sozinha há algum tempo e cozinhava, mas era a primeira vez que fazia arroz. E como sempre, não leu receitas nem começou pelo branco básico. Escolheu um arroz de jasmim, da índia, que preparou com curry e côco. O único erro - tem que ter um único erro idiota, dizia ela - foi na quantidade do arroz seco. Era dois pra um, fez um pra dois e resultou num panelaço de arroz perfumado e amarelão.
Ainda chorava quando desligou o fogo e foi olhar a chuva pela janela enquanto o arroz esfriava. Dizem que mulher com dor de amor quando cozinha deixa a comida de algum jeito que eu não me lembro. Salgada, muito cozida, azeda, não sei. Mas o arroz ficou muito bom. Tinha muito, mas ficou muito bom.
Suzana continuou olhando pela janela, desejando uma daquelas respostas que a gente nunca recebe quando precisa. Olhou pro barco-casa ancorado no canal, onde morava sozinho um velho senhor, bastante normal. Não era sábio, não era pai-de-santo, não sabia nada de budismo. Era só um velho senhor com uma cabeça de peixe no lugar da cabeça de homem.
Suzana percisava de companhia e sentiu vontade de dividir a comida e as dores. Encheu dois potinhos azuis de plástico - que originalmente comprou no mercado contendo noodles instantâneos - e tampou com tampinhas. Cobriu a cabeça com o capuz e foi bater na porta do barco-casa. O senhor botou a cabeça de peixe pra fora pra espiar que diabo. Abriu a porta e deixou a menina entrar, que explicou pouco, mas disse que se sentia sozinha e tinha feito arroz demais.
O velho, que era pobre (como todos os velhos sem nome em contos curtos) aceitou, mas não tanto assim de bom grado, como gostam de dizer. Ficou ali carrancudo sem falar muito ou nada.
Suzana pediu desculpas por aparecer assim e arriscou dizer de novo que se sentia sozinha, triste e perdida. Que o coração doía, que o amor tinha ido embora e a deixado na chuva e no frio (ali era Londres, mas ainda que fosse um país tropical, a gente sente chuva e frio quando o amor vai embora). Ouviu um resmungo, um suspiro mal-humorado. Torceu para que viesse em seguida uma história de vida pra confortar, já lá pra frente, onde as respostas estão. E nestas quais ela pudesse, talvez, se encontrar. Comeu quase nada e parou. Veio nada. Sentiu-se estúpida pela terceira vez naquele dia, dessa vez por achar que podia encontrar algum romance no meio duma noite tão comum, num barco-casa bobo de um senhor com cabeça de peixe.
Estava bom, ele disse, mas agora tenho sono. Ela pediu licença e não correu dali porque não se corre num barco-casa. Mas chegando na rua caminhou depressa, com vergonha da lua que agora aparecia, iluminando a bobice dela.
Dormiu no sofá, não queria encarar a cama super-king-size que ocupava o quarto de cima e acordou com epifania. Não quis saber da onde veio e nem parou pra analisar. Queria se transformar num comentário passageiro, "casou e foi morar nos Estados Unidos da América".
Tentou não ser dramática, disso tinha fama, e não olhou pra trás pra despedir de coisa nenhuma. Largou, inclusive, os potinhos azuis de plástico - que originalmente comprou no mercado contendo noodles instantâneos - sujos por cima da pia."




Cuento original de: Elisa Sassi.

1 comentário:

  1. genia !

    sim, senhoras e senhores, ella tambien escribe pra caralho!

    gracias por la historia.

    beijo. Juan.

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